IMG-LOGO
Notícias

Questões polêmicas do Provimento nº 88/2019 do CNJ

22 de janeiro de 2020

1. Em que sentido os usuários do serviço notarial e registral são “clientes”?

Superada é a discussão sobre a incidência do CDC nas relações entre delegatários e os usuários de seus serviços, pelo entendimento pacificado da Cortes Superiores (RE 178236/STF; Resp. 625.144/ STJ). A doutrina também afirma que “O serviço registrário, sendo em maior parte compulsório e sempre de predominante interesse geral, não se confunde com as condições próprias do contrato de consumo“1.

Em suma, a relação entre o delegatário e o usuário do serviço não é de clientela porque não é contratual, mas formada pelo caráter de autoridade, reconhecida como o poder certificante e pela fé pública – ambos exercícios de parcela de autoridade do Estado.

Mesmo assim, a redação do art. 4º do Provimento 88, na medida em que utiliza a expressão “cliente”, pode dar azo a más interpretações. Todavia, por vários motivos, essa previsão não pode afetar a natureza das relações entre delegatários e usuários de seus serviços. Em primeiro lugar, porque caput do art. 4º, ao utilizar expressão “para fins desse provimento”, restringe o campo de incidência do conceito legal. Nesse sentido, “cliente” é um dos termos “didáticos” que o Provimento 88 utiliza para “fixar conceitos que serão empregados ao longo da normativa”2.

Em segundo, porque a hermenêutica jurídica determina a interpretação das normas administrativas em conformidade com as leis em sentido estrito, não o contrário; assim, se o ordenamento prevê determinada natureza para a relação jurídica delegatário-usuário, ela não poderia ser alterada por normas infralegais.

Em terceiro, porque o CNJ simplesmente utilizou o termo “cliente” por adotar nomenclatura prevista nas Recomendações do GAFI, na Lei de Lavagem de Dinheiro e demais regulamentações.

Dessa forma, é preciso deixar claro: por mais que cause estranheza, não há possibilidade de que a designação dos usuários como “clientes” desvirtue a natureza não contratual e não consumerista das relações delegatário-usuário.

2. Oficial de cumprimento: um preposto com responsabilidade solidária

Embora seja longa a discussão a respeito da responsabilidade civil dos agentes delegados, também está superada. A partir do atual texto do art. 22 da Lei nº 8.935/1994 e do entendimento recentemente firmado pelo STF (RE 842.846), tem-se que o Estado responde direta e objetivamente pelos danos oriundos da atividade, tendo poder-dever de ajuizar ação de regresso em face dos delegatórios, por culpa ou dolo. Assim, os titulares de serventia têm responsabilidade subjetiva, pessoal e indireta. Quando o ato danoso for praticado por prepostos, o agente delegado tem direito de regresso.

Note-se que, nesse caso, há uma cadeia de responsabilidade com três partes e dupla ação do regresso: (i) perante o lesado, responde objetivamente o Estado; (ii) perante o Estado, responde o agente delegado, por culpa e dolo; e (iii) perante o agente delegado, responde o preposto (seja substituto, escrevente ou auxiliar), também por culpa e dolo.

Todavia, o oficial de cumprimento é uma exceção. Há uma especial peculiaridade nesse regime de responsabilidade, pois os substitutos respondem subsidiariamente, mesmo sendo prepostos aptos à prática de quase todos os atos da serventia. O oficial de cumprimento, mesmo sendo um preposto, responde solidariamente ao agente delegado, na forma do art. 8º, § 3º do Provimento 88, a saber: “Os notários e registradores, inclusive interinos e interventores, são solidariamente responsáveis com os Oficiais de Cumprimento na execução dos seus deveres”.

Note-se que o dispositivo não especifica a natureza da responsabilidade, podendo ser considerada administrativa e civil (pelo princípio da individualização da pena e por previsão do art. 24 da Lei nº 8.935/1994, a responsabilidade penal é individual). Assim, tanto no processo administrativo disciplinar quanto na ação de regresso por danos, constarão no polo passivo tanto o delegatário quanto seu oficial de cumprimento. Em caráter disciplinar, o ilícito é o descumprimento das regras do Provimento 88 (e outras normas incidentes correlatas); em caráter civil, o ato danoso pode estar relacionado à quebra do dever de sigilo, por exemplo, caso gere danos à imagem (sobretudo das chamadas “pessoas expostas politicamente”).

Ocorre que a Lei 8.935/1994 é taxativa ao dispor que o delegatário responde pelos atos de seus prepostos, os quais atuam sempre sob sua autorização. Uma vez que os oficiais de cumprimento são prepostos, parece claro que o art. 8º, § 3º é significativa inovação no mundo jurídico, extrapolando a competência normativa administrativa do CNJ. Trata-se de uma possível matéria de defesa em eventuais ações disciplinares e indenizatórias. Ainda é cedo para saber qual a interpretação que será dada às normas do Provimento 88, mas esse regime de responsabilização aparentemente é uma internalização inadequada do conceito de “oficial de conformidade”, que o GAFI prevê na Nota Interpretativa de Recomendação 18 (item 3).

3. Qual a função do sigilo das comunicações?

Para Vitor Kümpel e Giselle Viana, o sigilo nas comunicações presta-se a “garantir a efetividade da investigação que poderá eventualmente ser instaurada, bem como, se verificada a ocorrência do ilícito, a efetiva penalização dos envolvidos3. Sem olvidar desse importante aspecto, sob outra faceta o sigilo diz respeito à privacidade dos cidadãos.

O sigilo é para privacidade o que a posse é para a propriedade. Nos oitocentos, a privacidade confundia-se com direito a não ter a vida vasculhada sem motivo (right to be let alone). Porém, com o progresso da técnica, a coleta e o processamento de dados ascenderam vertiginosamente. Na atual Sociedade da Informação, os dados pessoais são fonte de poder e mercadoria valiosa. Assim, paralelamente, desenvolveu-se a Sociedade da Vigilância4: a gestão de dados pessoais permite o monitoramento, a classificação e a manipulação das pessoas. Nesse contexto, muito além do sigilo, procura-se tutelar o direito de acesso, correção e qualidade das informações sobre si mesmo. No Brasil, essa tutela é perceptível na Constituição Federal (art. 5º, X e XII), no Marco Civil da Internet e, sobretudo, na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais.

Muito se fala da coleta e processamento de dados por particulares, mas a privacidade em face Estado não é tão considerada como deveria. É fato que o Poder Público coleta dados sem intuito de lucro, o que traz inegáveis benefícios. Todavia, justamente por isso, a gestão de dados pelo Estado detém mais poder e é menos contestada. E a ausência de accountability é sempre perigosa aos indivíduos, às minorias e à própria Democracia. A história ensina que Estados totalitários, como o nazismo e o stalinismo, já se utilizaram da gestão de dados para perseguições, discriminações e graves violações a direitos humanos.

Assim como para outras atividades importantes, é fato que o uso de grande volume de dados é essencial no combate ALD/CFT. Porém, motivando-se no “bem comum” (concretizado na segurança nacional, na manutenção da ordem pública, no combate ao crime e ao terrorismo), o Estado brasileiro está formando um descomunal banco de dados com informações detalhadas dos cidadãos. Embora a coleta seja por vias diversas –Fisco, Justiça Eleitoral, UIF, etc. –, os dados são intercambiáveis entre as instituições. Assim, multiplicam-se as possibilidades tanto de combate efetivo ao crime, quanto de abusos e violações.

Como colaboradores que alimentam os bancos de dados estatais, os delegatários precisam ter cautela para não lesar a privacidade das partes envolvidas. Por um lado, nota-se que eventuais lesões podem decorrer, sobretudo, da quebra do dever de sigilo das comunicações e informações prestadas (cf: art. 15, parágrafo único; art. 18; art. 41 do Provimento 88). Por outro lado, como medida de “diligência razoável”, o delegatário tem o poder-dever de “investigar”, o que fará principalmente pela consulta a bancos de dados estatais, tais como: ao cadastro eletrônico de Pessoas Expostas Politicamente (art. 9º, § 6º e art. 16, parágrafo único); ao Cadastro Único de Beneficiários Finais (art. 9º, § 8º e art. 31, § 3º), aos dados fiscais e eleitorais (art. 43). São previstos, inclusive, convênios entre o Poder Público e entidades representativas de classe para regulamentar e facilitar o acesso a bancos de dados estatais.

É preciso cautela no uso desses instrumentos, pois pode-se lesar a privacidade consultado indiscriminadamente os bancos de dados. A uma, o art. 43, que limita tais consultas “aos dados necessários à confirmação da autenticidade dos documentos de identificação”. A duas, as consultas precisam ser fundamentadas na adequação da consulta com a suspeita relativa a operações e clientes próprios do agente delegado. Afinal, não seria razoável a consulta indiscriminada a informações de pessoas que nada tem a ver com as operações qualificadas pelo delegatário.

 

Referências

DONEDA, Danilo. Privacidade, vida privada e intimidade no ordenamento jurídico brasileiro. Disponível em: https://bit.ly/34kG8gv.Acesso em: 28 out. 2019.

GAFI. As recomendações do GAFI. Tradução feita por Deborah Salles e revisada por Aline Bispo sob a coordenação do COAF. Disponível em: https://bit.ly/2NwZyrW. Acesso em 08 out. 2019.

Kümpel, Vitor F.; VIANA, Giselle de Menezes. Prevenção à lavagem de dinheiro no Provimento n. 88 do CNJ: normas gerais e perspectiva do registrador de imóveisDisponível em: https://bit.ly/327QOgY. Acesso em 29 out. 2019.

RODOTÀ, Stefano. A Vida na Sociedade de Vigilância. A privacidade hoje. Organização, seleção e apresentação de Maria Celina Bodin de Moraes. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

  ———————————-

1 CENEVIVA, Walter. Lei dos Registros Públicos Comentada. 15 ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 57.

2 Kümpel, Vitor F.; VIANA, Giselle de Menezes. Prevenção à lavagem de dinheiro no Provimento n. 88 do CNJ. Disponível em: https://bit.ly/327QOgY. Acesso em 29 out. 2019.

3 Kümpel, Vitor F.; VIANA, Giselle de Menezes. Prevenção…

4 RODOTÀ, Stefano. A Vida na Sociedade de Vigilância. A privacidade hoje. Organização, seleção e apresentação de Maria Celina Bodin de Moraes. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.