Atual secretário da Educação do Estado de São Paulo, José Renato Nalini deixou o Poder Judiciário há dois anos, quando se aposentou do cargo de desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP), onde atuou como presidente da Corte (2014 a 2015) e Corregedor Geral da Justiça (2012 a 2013), para assumir a Secretaria da Educação, a convite do governador Geraldo Alckmin.
Desde 2016, o magistrado vem se dedicando às questões do Poder Executivo, o qual define como indiscutivelmente mais difícil de atuar, pelo enfrentamento de situações críticas e pela insuficiência de recursos.
Em entrevista exclusiva para a Cartórios com Você, o secretário fala sobre o desafio de atuar na administração da Secretaria da Educação, e, com a experiência vivida em dois dos Poderes da República – Judiciário e Executivo – destaca como a atividade extrajudicial poderia colaborar ainda mais com a prestação de serviço à população e desburocratização do Estado brasileiro.
CcV – Cartórios e Secretaria da Educação lançaram o projeto “Adote uma Escola”. Qual a importância desta iniciativa?
José Renato Nalini - É da máxima importância. A Constituição da República é muito clara ao tratar da educação. Ela erigiu a educação a um “direito de todos”, mas em “dever do Estado e da família, em colaboração com a sociedade” - artigo 205. O Estado de São Paulo investe 30% de seu orçamento em educação. Mesmo assim, não consegue atender a todas as demandas, pois elas são crescentes e se sofisticam. Por isso é que família e sociedade precisam ajudar a cuidar da educação. Com a participação desses autores, igualmente responsáveis pelo projeto de educar as novas gerações, tudo será mais eficiente, eficaz e efetivo. E as delegações extrajudiciais são instituições de primorosa gestão, não têm o erário por si, então têm de se autoadministrar com seriedade, prudência e racionalidade. Podem prestar imenso auxílio à causa educacional se assumirem afetivamente as escolas públicas.
CcV – O senhor vivenciou durante anos a atividade na magistratura e agora encontra-se no Executivo. O que o levou a aceitar este desafio?
José Renato Nalini - Foi a insistência do governador do Estado de São Paulo, que me solicitou esse sacrifício pessoal. Eu poderia permanecer mais cinco anos no Tribunal de Justiça de São Paulo, instituição que eu respeito e amo. Ali deixei meu coração. Mas sabia que, se me recusasse, minha consciência rígida me acusaria de negar minha modesta contribuição a uma causa de extrema relevância para a nação. Sem dúvida, a maior e a mais importante das causas. Sem educação de qualidade, nunca chegaremos ao Brasil de nossos sonhos. |
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CcV – Onde é mais difícil atuar, no Poder Executivo ou no Poder Judiciário?
José Renato Nalini - Indiscutivelmente, no Executivo. O Poder Judiciário é um paraíso. A atuação em segunda instância tende a tornar o magistrado alguém distanciado da realidade. Só estuda teses, só lê argumentos, só escreve e decide, sem o enfrentamento de uma situação crítica, a de insuficiência de recursos, de obstáculos de toda a ordem, começando pela estreiteza do pensamento jurídico.
É surrealista a posição do Direito quando se trata da administração. Presume-se a má-fé, a resposta é sempre negativa. Não há criatividade, nem flexibilização da rigidez formal e procedimental. Em tempos de crise, é uma epopeia realizar qualquer missão. E o momento também não ajuda quem se propõe a gerir a coisa pública. Há uma espécie de desalento geral que contamina grande parte da população. Todo juiz deveria experimentar seu dia de administrador, para adquirir maior consequencialismo.
CcV – Como avalia o atual cenário jurídico do País?
José Renato Nalini - Tenho a convicção de que o excesso de faculdades de Direito, a proliferação das carreiras jurídicas, o ensino ultrapassado que prioriza a solução processual, dificultaram bastante o desenvolvimento brasileiro. A vida brasileira foi judicializada. As pessoas já não se esforçam para obter uma composição consensual dos conflitos e preferem adentrar em juízo, enfrentando as vicissitudes de um sistema bastante sofisticado de Justiça, com quatro instâncias e mais de cinquenta oportunidades de reapreciação do mesmo tema, pois é caótica a estrutura recursal.
O Direito precisa de uma urgente revisita. Sob essa vertente, as delegações extrajudiciais estão muito à frente da Justiça em sentido estrito. Detectaram as mutações da sociedade, anteciparam-se à 4ª Revolução Industrial e cumpriram, com exatidão, o princípio da eficiência, inserto no artigo 37 da Constituição da República. Deveriam merecer carga maior de atribuições, pois realizam missões com celeridade, exatidão e economia superior às reservadas ao Estado, quando as exerce diretamente.
CcV – Durante seus anos à frente da Corregedoria e depois da Presidência do TJ-SP, o senhor sempre criticou o excesso de demandas no Judiciário. Como vê a importância de que se busquem métodos alternativos de jurisdição?
José Renato Nalini - Sempre defendi essa busca, não com o intuito de aliviar a carga de trabalho do Judiciário, mas por pensar que uma democracia participativa não pode prescindir de uma cidadania proativa, assertiva, consciente. O indivíduo que não consegue dialogar com o adverso em busca de uma solução negociada, mas precisa do equipamento judicial para resolver questiúnculas, na verdade não é aquele cidadão de que a República está a necessitar.
Embora chamemos, eufemisticamente, a parte de “sujeito processual”, ela é, na verdade, “objeto da vontade do Estado-juiz”. A decisão judicial incide sobre ele sem que tenha exercido a potencialidade de livre discussão do conflito. Há regras no processo e elas inibem o exaurimento de um debate que se torna mais profícuo, livre e completo, no âmbito de uma negociação, de uma conciliação, mediação ou qualquer outra das múltiplas possibilidades há muito exploradas no direito anglo-saxão. O defeito maior da judicialização excessiva é converter a massa de jurisdicionados em pessoas tuteladas, sempre consideradas hipossuficientes, pois não sabem cuidar de seus próprios interesses sem a intermediação de profissional provido de capacidade postulatória. Não treinam para ser cidadãos, pois se não aprendem a defender aquilo que lhes pertine diretamente, como o farão em relação ao bem comum, ao interesse de todos?
CcV – Dentro deste contexto, qual a importância da participação de notários e registradores neste processo de diminuição da carga do Judiciário?
José Renato Nalini - Os notários e registradores são os primeiros conselheiros para os necessitados de orientação jurídica. Sua missão é essa. Quem procura um tabelião para uma escritura, um testamento, para lavrar uma procuração, conta as suas necessidades, relata suas dúvidas e obtém a resposta adequada.
O registrador resolve todas as questões dominiais e de outros direitos reais confiados ao seu zelo para a aquisição da ambicionada segurança jurídica. Lamentável que o meu Provimento na Corregedoria, que apenas reconhecia aquilo que a Lei já atribui aos delegados de serviços extrajudiciais, tenha sido questionado no CNJ.
Ao contrário do que a própria Justiça prega: conciliar, negociar, mediar, obter consenso, é o que realmente pacifica a sociedade. A sentença pode ser até um fator de recrudescimento na estranheza gerada pela controvérsia. Há conflitos intermináveis, que só acabam quando os contendores se entendem. Isso nem sempre - ou melhor, quase nunca - ocorre no âmbito do Judiciário.
CcV – Também em sua gestão à frente da Corregedoria foi editado o primeiro provimento de mediação extrajudicial no País, que acabou suspenso pelo CNJ. Passado tanto tempo, como vê o fato dessa questão ainda não ter tido uma solução?
José Renato Nalini - É mais um dos paradoxos brasileiros. Situação surreal, kafkiana, irracional. Com o Brasil precisando tanto de soluções harmônicas, com o recrudescer da crítica ante a lentidão dos processos, da insuficiência do aparato judicial para resolver questões, impede-se quem tem a missão de pacificar, quem possui expertise, quem é por lei obrigado a conferir a resposta jurídica mais adequada ao problema que se lhe apresente, de cumprir com exatidão o seu estatuto funcional.
CcV – Em sua atuação como Corregedor Geral da Justiça, o senhor visitou cartórios em todo o Estado de São Paulo. Qual foi a realidade que vivenciou nestas visitas?
José Renato Nalini - Fiquei impressionado com a dedicação, o devotamento, o zelo e a competência técnica de todos os responsáveis. Vi a seriedade com que a delegação é conduzida. Cotejei com o funcionamento do serviço público, onde o acúmulo de vantagens funcionais, os direitos e o regime que vai sendo enxertado de benefícios permitem uma vida bem mais tranquila do que a propiciada aos cartorários. Estes não têm por si o erário, não têm holerite. Se não trabalharem, não receberão salário.
Causou-me admiração as jovens gestantes que, à frente do seu cartório, não usufruem da licença maternidade, pois têm de atender à clientela e, se a pequena serventia de Registro Civil não estiver aberta, não terão como satisfazer as suas despesas mínimas.
Admiro muito a classe, que aprendi a respeitar quando no exercício da 1ª Vara de Registros Públicos e também na 2ª, depois na assessoria do corregedor geral da Justiça, o inesquecível e saudoso desembargador Sylvio do Amaral, como integrante da comissão de concurso junto ao eminente e também saudoso desembargador Antonio Carlos Alves Braga e, finalmente, como presidente do 6º Concurso de Outorga de Delegações e como corregedor geral da Justiça. Posso falar com certo conhecimento de causa sobre a excelência do serviço extrajudicial, cujo status constitucional considero a mais inteligente estratégia do constituinte de 1988.
CcV – O senhor sempre defendeu a prestação de serviços eletrônicos pela atividade extrajudicial. No entanto, as normas não permitem ou não acompanham a evolução da sociedade. Como conciliar esta dicotomia?
José Renato Nalini - Torno a dizer que a ciência jurídica precisa ser repensada. Estamos imersos em plena 4ª Revolução Industrial, num turbilhão em que sequer temos condição de avaliar o grau e intensidade das mutações, e o ensino jurídico permanece o mesmo: disciplinas compartimentadas, ênfase no processo, desconhecimento total de que a inteligência artificial poderá substituir toda a “decoreba” que se insiste em preservar.
Já existem startups que resolvem problemas jurídicos em segundos, com 98% de exatidão e que podem substituir inúmeras profissões jurídicas. Ainda recentemente vi a iniciativa de um jovem francês que criou a “Wonderlegal” e que já tem clientes em nove países. Responde-se a qualquer indagação, redige-se contrato e outras peças jurídicas, sem a intermediação humana. Só inteligência artificial!
Se os educadores não se conscientizarem, continuarão a vender ilusão aos futuros bacharéis que, após cinco anos de faculdade, não terão condições de encontrar mercado de trabalho compatível com o tempo e os recursos investidos. Continuarão a fazer o que já faziam antes da faculdade, mas frustrados, decepcionados e ressentidos.
É urgente mostrar que o Direito precisa reduzir o fosso em que se encontra, diante da era digital que oferece desafios como a robótica, a nanotecnologia, o mundo das redes, o big data, a programação, a automação, a biotecnologia, a engenharia genética e tantos outros temas que vão sugerir profissões para as quais sequer nomes ainda temos.
CcV – Outra defesa que o senhor sempre fazia era a de que notários e registradores eram em muitos municípios o único elo do cidadão com o Estado. Acaba de ser sancionada a Lei 13.484/2017, que permite aos cartórios de Registro Civil prestar, mediante convênio, alguns serviços à população, como a emissão de carteiras de identidade ou de trabalho. Como vê esta inovação?
José Renato Nalini - Pode parecer cabotinismo, porém já sugeri isso muitas vezes. O Registro Civil das Pessoas Naturais é o detentor de informações que nele deveriam ser centralizadas como repartição estatal que funciona em caráter privado e que, por isso mesmo, não tem os ranços e os vícios do serviço público. É muito bom que, embora tarde, o Estado perceba que precisa se servir mais desses delegados responsáveis, concursados, preparados, competentes e devotados que são os detentores de tais atribuições estatais.
CcV – Quais outras parcerias poderiam ser desenvolvidas entre as atividades judiciais e extrajudiciais brasileiras?
José Renato Nalini - Penso que todo o relacionamento da cidadania com o Estado e com outras entidades, e mesmo as relações entre as pessoas, deveriam prescindir de qualquer outra repartição ou burocracia, mas concentrar-se nos Registros Civis das Pessoas Naturais.
Toda delegação deveria ser uma instância de pacificação e de obtenção de acordos, ajustes, consensos. Os Registros de Imóveis poderiam se encarregar de receber o IPTU, por exemplo. Tudo o que significa retrabalho, superfetação, sobrecarga de atribuições, poderia ser bem exercido se entregue aos delegados de serviços extrajudiciais. Para ganho da população e da eficiência, tão desprestigiada no Brasil.
CcV – No último relatório Doing Business, o Brasil ficou em 128º na avaliação referente ao registro de propriedades, ficando atrás, inclusive, de países com maior custo e maior tempo para efetuar o registro. O senhor acredita que os cartórios têm elementos necessários para melhorar a posição do País neste quesito?
José Renato Nalini - Sim. E a informática, a cibernética, a eletrônica, todas as tecnologias da informação e comunicação, já pioneiramente desenvolvidas pelas serventias, têm condições de alavancar os serviços e de torná-los a cada dia melhores, mais seguros, confiáveis e eficientes.
CcV – Como avalia a atuação dos serviços de notas e registros na concessão de segurança jurídica às relações econômicas?
José Renato Nalini - É a melhor alternativa, pois não encontramos disfuncionalidades nos cartórios, a despeito do elevado número de atos praticados. É o que distingue a serventia de um serviço exercido por particular que não passa por concurso público, nem é fiscalizado, controlado e orientado pelo Poder Judiciário, como ocorre com as delegações.
CcV – Qual a importância da atividade de notas e registro para a sociedade?
José Renato Nalini - O sistema brasileiro se notabiliza pela segurança jurídica, pelo contínuo aprimoramento e pela eficiência. Repito: é a mais inteligente dentre as estratégias adotadas pelo Constituinte de 1988.
Passa à responsabilidade do particular uma obrigação eminentemente estatal e, além de não contribuir com um centavo para o andamento dos serviços, ainda leva percentual considerável daquilo que o delegado percebe para praticar o ato em nome do Estado.
Detentor da segurança jurídica, da confiabilidade provinda da delegação estatal após concurso público de provas e títulos, realizado pelo Poder Judiciário, o cartório é uma instituição que orgulha o Brasil e que tem sido cogitada para implementação em outros Países, tamanho o êxito e acerto alcançados durante sua trajetória, sempre ascendente e sempre surpreendente.
A desenvoltura que o Estado não tem, a delegação extrajudicial, além de possuir, ainda sabe dela se valer para tornar-se insubstituível na República Federativa do Brasil.