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Artigo: Bases constitucionais da alteração do registro civil do indivíduo transexual: a desburocratização do acesso à direitos fundamentais

19 de fevereiro de 2019

por Francine OLIVEIRA QUEVEDO[1]

 

Sumario: 1. Introdução. 2. O Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito. 3. O desenvolvimento do Estado Democrático de Direito. 4. O panorama de defesa da pessoa trans. 5. A alteração do Registro Civil por Pessoas Transexuais. 5.1. A desburocratização do procedimento e a concretização da dignidade humana. 5.2. O Provimento 16/2018 da Corregedoria Geral de Justiça do Estado de SP e o Provimento 73/2018 do Conselho Nacional de Justiça. 6.Conclusão

 

1. Introdução

O presente artigo tem como objetivo investigar os fundamentos constitucionais que embasam a alteração do registro civil por pessoas transexuais. Assume-se como quadro de discussão a recente decisão do Superior Tribunal Federal no julgamento do caso de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4275, cuja sessão do dia 01 de março de 2018 encerrou a controvérsia acerca da alteração de prenome por averbação no registro civil da pessoa, independente da realização de cirurgia ou ainda autorização judicial.

Com essa ação do Poder Judiciário brasileiro torna-se possível investigar o encaminhamento do ordenamento jurídico para a proteção da pessoa em sua integridade física e psíquica, ao qual se inclui os grupos historicamente excluídos de reconhecimento jurídico: os transexuais. A fim de compreender esse panorama, analisa-se o processo de constitucionalização do direito no Brasil, ao qual se entende a forte preeminência dos princípios constitucionais na esfera das relações privadas – ao qual se salienta a dignidade humana –  e a primazia da Constituição Federal, com sua força normativa a influir no comportamento das instituições.

Nesse mesmo interim, investiga-se o Estado Democrático de Direito e a premissa de que a realização da democracia demanda a despatologização da transexualidade e o respeito a diversidade de gênero – trata-se aqui do respeito a diversidade pelo Estado brasileiro. Ao destacar o peso da legislação ordinária como no caso do Código Civil e a enunciação do Princípio da Imutabilidade do Nome (art. 1.6004 Lei nº 10.406/2002), investiga-se até que ponto o Superior Tribunal Federal pode exercer o papel de protetor dos direitos humanos, e nos casos de anacronismo das leis com as dinâmicas e interações sociais, promover o correto ajuste entre proteção legal-constitucional e segurança jurídica.

Assim, focaliza-se a análise da alteração do nome no registro civil em contraponto com as figurações da cirurgia de transgenitalização – enquanto se estuda a possibilidade desse mecanismo representar uma limitação a autodeterminação da pessoa trans, visto que, com o critério da cirurgia, a identidade de gênero permanece adstrita a uma experiência de elevadas implicações, que estão além do reconhecimento da identidade pessoal.

Discute-se a desburocratização do procedimento de alteração, ao qual se dá destaque ao papel dos cartórios extrajudiciais em promover os direitos de personalidade – direitos estes fundamentais – da pessoa transexual. Aqui tem-se a análise da Lei de Registros Públicos, Lei nº 6.015 de 1973 ao qual em seu art. 13 enuncia que os atos de registro podem ser praticado mediante (I) ordem judicial, (II) requerimento verbal ou escrito dos interessados ou (III) a requerimento do Ministério Público quando a lei autorizar – procura-se compreender como seria possível incluir a alteração do nome pela pessoa trans na segunda hipótese e com isso, possibilitar a alteração do nome sem que o indivíduo precise mobilizar o Poder Judiciário.

Nesse sentido, focaliza-se a importância dos Cartórios de Registro Civil em exteriorizarem as diretrizes teóricas constitucionais de igualdade de direitos, respeito a diversidade e proteção da dignidade humana.

Realiza-se o paralelo da ação de desburocratização com o movimento constitucional ao qual a ciência jurídica encontra-se imersa após o século XX – denominado enquanto Neoconstitucionalismo – e os sentidos de um pós-positivismo no direito, do qual tem-se a movimentação da prática jurisdicional na consideração não apenas da regra da lei, mas dos princípios do direito a fim de promover a melhor solução – a que mais coadune com a defesa da pessoa humana – para o caso concreto.

Nesse sentido, se por um lado tem-se a Lei de Registros Públicos que dispõe um rol limitativo de hipóteses de alteração do nome no registro civil – ao qual não encontra a alteração para a pessoa transexual; e, por outro lado, tem-se a possibilidade de expandir a interpretação da lei para realizar a dignidade da pessoa humana. Tal abertura, ao que se defende no presente artigo, coaduna com a realização das premissas constitucionais pelas instituições do Poder Público, bem como, encontra aparo no pós-positivismo e no Neoconstitucionalismo, em que a Constituição Federal eleva a força normativa de seus princípios para os casos que se desdobram na realidade jurídico-social do país.

2. O Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito

A defesa dos direitos das pessoas transexuais pode ser compreendida no quadro da constitucionalização do direito no Brasil, ou seja, no panorama de influência das premissas contidas na Carta Magna para as matérias especificas do direito presentes no ordenamento pátrio, isto porque, o acesso ao nome é parte do arcabouço de direitos da personalidade, além disso, coaduna coma  esfera de exercício da cidadania. Os obstáculos de acesso a identidade pelo cidadão podem resultar em ofensas a sua saúde psicológica e física bem como, como se verá, resultar em constrangimentos e exclusão social. 

Salienta-se que, após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) o mundo como um todo vivencia um novo paradigma ante a constatação das violações dos direitos mais básicos da pessoa por Estados considerados legais – a saber, os Estados nazistas e fascistas da Alemanha e da Itália. Como um todo tem-se a figuração de ditaduras que arguem o argumento da eficiência estatal para ignorarem as premissas constitucionais; e, com isso, conduzem a humanidade a um panorama de tragédias. Ante esse cenário, a comunidade jurídica reestrutura a consciência em prol dos sistemas constitucionais a fim de que o cenário de instrumentalização da pessoa não se repita. Busca-se a garantia do respeito à dignidade humana e aos princípios que embasam a convivência pacífica e plural[2].

A base do Neoconstitucionalismo, esse novo movimento constitucional que preza pela instrumentalização dos órgãos públicos para realizarem a finalidade de defesa dos direitos fundamentais da pessoa, encontra-se no desenvolvimento de (i) uma teoria constitucional que seja totalizante, abarcando todo o cenário jurídico-social e institucional; (ii) a não subordinação do Poder Judiciário as opções dispostas pela Legislação, ou seja, a possibilidade de que o Judiciário realize decisões que abranjam as situações de defesa da pessoa dispostas na Constituição – ao qual o caso da ADI nº 4275 torna-se um exemplo; (iii) a utilização de instrumentos para as finalidades constitucionais tais como os princípios, os valores, a ponderação e a aplicação dos direitos fundamentais[3].

Nesse viés, tem-se o substrato constitucional para guiar as ações do Estado. Trata-se ainda da vinculação ao cumprimento das premissas constitucionais por todos os Poderes do Estado e um esforço conjunto da comunidade política, jurídica e social em afastar situações de violência contra a pessoa, ocorrências que impeçam o acesso aos direitos inerentes a toda gente; e promover ações, no escopo de suas competências, para a realização dos ideais constitucionais.

3. O desenvolvimento do Estado Democrático de Direito

Assevera-se que o Estado nasce a partir de uma disposição da comunidade civil em lhe ofertar legitimidade, dando-lhe a sua vontade a fim de produzir um “corpo coletivo”, isso, com a finalidade de que esse órgão soberano promova a proteção dos bens jurídicos mais essenciais à comunidade – qual seja, a segurança, a vida e a integridade da pessoa[4].

O Estado Democrático de Direito passa a estar caracterizado pela indispensabilidade dos sistemas que verifiquem a vontade da população; um organismo que fomente a Constituição, respeitando a sua materialidade, legitimidade, rigidez e conformidade com a vontade popular; a determinação de uma Constituição que respeite as regras mais essenciais da vida em comunidade, principalmente o respeito a pluralidade. Além disso, é determinante ao Estado Democrático que estruture um sistema de proteção dos direitos humanos, desenvolva o quadro da justiça social e promova os instrumentos de igualdade formal e material, além de deter órgãos judiciais que atuem conforme os princípios de liberdade e independência[5].

Assim, tem-se os Poderes do Executivo, do Legislativo e do Judiciário vinculados a realização das premissas constitucionais em todas as suas práticas, ainda que devam obediência aos princípios próprios da Administração Pública como a legalidade, a segurança jurídica e a separação de poderes. Abaixo esclarece-se o compromisso institucional dos Poderes do Estado Democrático de Direito para com a realização dos direitos fundamentais: Para o jurista português Canotilho, a ordem constitucional dos Direitos Fundamentais está necessariamente ligada ao princípio democrático que a informa, isto é, à concepção constitucional do Estado de direito democrático. Sua contribuição apta a ser transplantada para a efetividade dos Direitos Fundamentais no Brasil se traduz pelos modos de garantia e preservação da própria Constituição. Por ser o princípio democrático um princípio jurídico - normativo, ele aponta para a democracia como forma de vida, de racionalização do processo político e de legitimação do poder. A efetivação então dos Direitos Fundamentais se dá estabelecendo – se operações de concordância prática entre eles mediante relações de complementaridade, de condicionamento e conjugação das normas com o aperfeiçoamento dos mecanismos da democracia. Já para o jurista alemão Alexy, o Estado ideal é da combinação entre liberdade e proteção social. A justiça pode fazer isso por intermédio da teoria da ponderação. Se o parlamento não é capaz de proteger os Direitos Fundamentais, o Judiciário deve fazê-lo. E, para que o Judiciário possa fazê-lo, Alexy busca desenvolver uma argumentação jurídica racional de ponderação, visando evitar “intuicionismo” para decidir mediante a sugestão de parâmetros axiológicos baseados em circunstâncias que possibilitam a satisfação dos graus variados de ordem fática ou jurídica. Para o alemão podem existir regras e princípios de Direitos Fundamentais. Em caso de conflito de regras, resolve - se pela exceção ou invalidade de uma delas. Já em caso de colisão de princípios, resolve - se pelas três submáximas da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.[6]

Tem-se a conexão dos direitos fundamentais com o Estado Democrático de Direito, pela realização desses direitos pelas instituições do Poder Público, não apenas do Judiciário, mas de todos os órgãos que integram o Legislativo e o Executivo. Essa vinculação constitucional do Estado Democrático de Direito com a carta Magna está expressa próprio preambulo da Constituição Federal de 1988.

Nesse sentido coaduna-se o quadro do Neoconstitucionalismo, da proteção dos direitos fundamentais da pessoa e das ações dos Poderes do Estado (o Executivo, o Legislativo e o Judiciário). O próximo capítulo aprofunda isso ao investigar o panorama de defesa da pessoa trans e a defesa por parte do Superior Tribunal Federal, nas demandas de sua competência, para com os direitos fundamentais desse grupo social. 

4. O panorama de defesa da pessoa trans

O conceito de pessoa transexual é expresso por aquele indivíduo que tem a inalterável convicção de pertencer ao sexo oposto daquele que está adstrito em seu registro de nascimento original, do qual assume reações características do sexo ao qual o sujeito está identificado de modo psíquico e social[7].

Compreende-se que a realização dos direitos fundamentais da pessoa transexual está associada a adequação de seu nome no registro oficial de identidade, essa demanda mobiliza órgãos do Estado, organizações não governamentais e grupos organizados. Nesse quadro encontra-se o relatório da ong de Direitos Humanos Transgender Europe(TGEU) que busca assinalar o panorama dos direitos dos indivíduos transexuais no contexto europeu – e que serve de comparação para a realidade brasileira.

Ao focar a alteração do nome e do sexo nos documentos oficiais, o TGEU destaca o reconhecimento de gênero a partir de procedimentos anti-burocráticos que prezem, sobretudo, pela acessibilidade. Identificou-se, por meio do Mapa de Direitos das Pessoas Trans, que em 41 Estados europeus é possível alterar os documentos de identidade, ainda que apenas 29 países tenha um sistema consolidado de reconhecimento desses direitos. Identifica-se a existência de 24 Estados que realizam a exigência de esterilização do indivíduo para que altere o seu registro civil, um total de 37 Estados exigem o diagnóstico de transtorno mental,  24 a cirurgia de transgenitalização, além de ressaltarem a obrigatoriedade de que o cidadão mantenha-se solteiro, e a determinação de que os que estejam casados se divorciem; e não permitem a menores de 18 anos essa alteração[8].

No Brasil o cenário de direitos da pessoa transexual está caracterizado pela mobilização do movimento de direitos da diversidade, ao qual se encontra o movimento LGBTQI, em busca do reconhecimento da cidadania das pessoas transexuais para que a mudança de nome e sexo se dê sem a necessidade de cirurgia.

Nesse sentido, busca-se a concretização dos direitos de igualdade e dignidade dispostos na Carta Magna. Tal reconhecimento de direitos detém um histórico de julgamentos no Brasil, ao qual se encontra a ADPF nº 132/ADI 4277 em que se reconhece a união homoafetiva como entidade familiar[9].

A ADI n.º 4.275, protocolada no ano de 2009, expressa o requerimento da Procuradoria Geral da República pelo reconhecimento do direito de transexuais modificarem seu prenome e sexo ante o ordenamento jurídico por meio de alteração no registro civil, independentemente de cirurgia de transgenitalização.

O cenário de sofrimento da população transexual está pautado em um histórico de patologização da identidade de gênero, do qual, somente no ano de 2018 a OMS reconheceu não constituir uma doença mental e assim retirou o “ismo” presente nessa condição de identidade.

A nova Classificação Internacional de Doenças (CID) publicada em 18 de junho de 2018, deixa de constar na lista de transtornos mentais, a transexualidade. Todavia, não representa, de fato, uma despatologização total da transexualidade, visto que a transexualidade deixa de ser classificada em conjunto com a esquizofrenia, cleptomania e depressão, por exemplo, mas passa a consta na lista de “incongruência de gênero”, ou seja, das condições relativas à saúde sexual – dos quais se encontram também a ejaculação precoce e a disfunção erétil[10].

O preconceito social é outra característica que permeia a vida da pessoa transexual, ao qual a não alteração do nome no registro civil tende a aumentar as ocorrências de violência psicológica, moral e física contra a pessoa.

A respeito do preconceito social contra pessoas transexuais, coloca-se: A violência a qual estão sujeitas, seja psicológica ou física, é tida como naturalizada no imaginário social, formulada por significações do que é ser travesti e transexual engendradas e generalizadas sobre o preconceito e discriminação no universo desta categoria (5-6). Conforma-se esta afirmação através dos dados sobre a violência que este público enfrenta no Brasil, sendo declarado em uma investigação (7), da qual 10% dos sujeitos entrevistados sentem ódio e aversão por pessoas trans, sendo maior a parcela confessada por homens. Quando se considera apenas a antipatia pelo público, os números elevam-se para 46%. Análoga a uma rota de fuga pela sobrevivência, as pessoas com identidades transgênero são “não visíveis” na experiência e vivência societária, escapando à norma social e sendo, portanto, renegadas a uma subsistência oculta e vitimadas pelo preconceito imposto pela normatização social. Ou seja, apesar das conquistas e garantias constitucionais e outros direitos obtidos pela população de LGBT, o Brasil se mostra como um dos países com forte intolerância contra esse segmento. A diversidade tipológica da intolerância e da violência variam de forma crescente, desde o assédio moral, a discriminação até a morte.[11]

Assim, a jurisprudência abaixo demonstra o caso de uma mulher transexual, que buscou, em 2007, perante o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, a alteração de seu prenome e sexo no registro civil. Em 1º grau ocorreu o deferimento do pedido da autora, todavia o Ministério Público entrou com uma apelação requerendo o indeferimento da pretensão autoral pela justifica da imutabilidade do nome e de que o pedido da cidadã transexual não estaria balizada pela lei de Registro Civil, visto não entrar nas hipóteses do art. 58 da Lei nº 6.015/73. A apelação foi aceita, o que conduziu a autora a entrar com recurso ante o Superior Tribunal de Justiça.

In verbis, a decisão do Superior Tribunal de Justiça: Deve, pois, ser facilitada a alteração do estado sexual, de quem já enfrentou tantas dificuldades ao longo da vida, vencendo-se a barreira do preconceito e da intolerância. O Direito não pode fechar os olhos para a realidade social estabelecida, notadamente no que concerne à identidade sexual, cuja realização afeta o mais íntimo aspecto da vida privada da pessoa. E a alteração do designativo de sexo, no registro civil, bem como do prenome do operado, é tão importante quanto a adequação cirúrgica, porquanto é desta um desdobramento, uma decorrência lógica que o Direito deve assegurar. Sobretudo, assegurar ao transexual o exercício pleno de sua verdadeira identidade sexual consolida, sobretudo, o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, cuja tutela consiste em promover o desenvolvimento do ser humano sob todos os aspectos, garantindo que ele não seja desrespeitado tampouco violentado em sua integridade psicofísica. Poderá, dessa forma, o redesignado exercer, em amplitude, seus direitos civis, sem restrições de cunho discriminatório ou de intolerância, alçando sua autonomia privada em patamar de igualdade com os demais integrantes da vida civil. A liberdade se refletirá na seara doméstica, profissional e social do recorrente, que terá, após longos anos de sofrimentos, constrangimentos, frustrações e dissabores, enfim, uma vida plena e digna. De posicionamentos herméticos, no sentido de não se tolerar imperfeições como a esterilidade ou uma genitália que não se conforma exatamente com os referenciais científicos, e, consequentemente, negar a pretensão do transexual de ter alterado o designativo de sexo e nome, subjaz o perigo de estímulo a uma nova prática de eugenia social, objeto de combate da Bioética, que deve ser igualmente combatida pelo Direito, não se olvidando os horrores provocados pelo holocausto no século passado. Por fim, destaca-se que o recorrido trouxe aos autos certidões expedidas por diversos órgãos federais e estaduais, de modo a resguardar eventuais direitos de terceiros. Forte em tais razões, CONHEÇO e DOU PROVIMENTO ao presente recurso especial, para julgar procedente a pretensão do recorrente, determinando assim a alteração de seu assento de nascimento, a fim de que nele constem as alterações do designativo de sexo, de masculino para feminino”, e do prenome, de CLAUDERSON para PATRÍCIA. Determino, outrossim, que das certidões do registro público competente não conste que a referida alteração é oriunda de decisão judicial, tampouco que ocorreu por motivo de redesignação sexual de transexual.

Abaixo encontram-se, em tópicos, algumas colocações importantes que situam o comportamento do Superior Tribunal de Justiça acerca da alteração do nome, antes da decisão do STF na ADI 4275, e que, no caso concreto enunciado proferiu o deferimento ao pedido da autora para alterar o sexo e o nome no registro civil – atente-se que no caso em tela a autora já havia realizado a cirurgia de transgenitalização, até então vista como critério imprescindível ao acesso do nome pelo cidadão transexual.

Os tópicos abaixo expressam as considerações mais relevantes transcritas na Relatoria da Ministra Nancy Andrighi no caso do Recurso Especial nº 1.008.398 – SP, e possibilitam que se faça um esboço do cenário de acesso ao nome por parte dos cidadãos transexuais antes da ADI 4275.

Assim, segue-se:

  • A cidadão transexual detém a aparência de um gênero (ao qual se identifica), todavia, em seus documentos oficiais tem-se a exposição de nome e sexo de um outro gênero (ao qual não se idêntica, ainda que seja o de seu nascimento). Tal fato produz inúmeros transtornos na vida da pessoa;
  • Há um considerável número de decisões dos Tribunais de Justiça estaduais (ao qual citam-se os exemplos do Rio Grande do Sul, do Amapá e de Pernambuco) que permitem a alteração e retificação do nome e sexo da pessoa em seu registro civil, todavia, mediante a submissão da pessoa a cirurgia de redesignação sexual;
  • Assevera a relatora que a identificação de gênero não se limita a “conformação da genitália” da pessoa e que na época da elaboração da Lei de Registro Civil, ou ainda da “obrigatoriedade do registro civil” era a genitália o critério para delimitar o sexo da pessoa. Todavia, com os avanços tecnológicos e científicos da atualidade novo critérios se assomam como o psíquico, comportamental, o médico-legal e o jurídico;
  • Tem-se a colocação da segurança jurídica presente na lista restritiva de possibilidade de alteração do nome enunciadas pela Lei nº 6.015/73, cuja desobediência à lei incide em violação da segurança jurídica;
  • Todavia, tem-se o assentamento na sociedade da cirurgia de transgenitalização, inclusive enquanto um procedimento custeado pelo Sistema Único de Saúde. De modo que o Estado ignorar essa possibilidade de alteração do nome incorreria em um fato social existência que demanda repercussões jurídicos – no caso, de proteção à pessoa;
  • Cita-se o Projeto de Lei nº 70 de 1995 que busca alterar o art. 58 da Lei dos Registros Públicos para incluir a possibilidade de mudança do prenome e sexo no registro civil dos cidadãos transexuais;
  • Cita posição do Tribunal Alemão com a “Lei dos Transexuais - Transsexuellengesetz TSG” que permite desde 1980 o registro de transexuais; e expõe uma “tendência mundial” de que ocorra a conformação do sexo jurídico ao sexo aparente da pessoa. 

Assinala-se que o Projeto de Lei citado no caso em comento, cujo autor foi o parlamentar José Coimbra do PTB/SP, o Projeto de Lei nº 70 de 1995 encontra-se em pauta no Plenário. Todavia, o projeto segue a linha da necessidade de cirurgia de transgenitalização para a alteração do prenome do indivíduo, e ainda, reforça a necessidade de utilização o Poder Judiciário para afirmar esse direito, não ocorrendo mediante mero ato administrativo.

Salienta-se a ementa do projeto: Autor José Coimbra - PTB/SP Apresentação 22/02/1995 Ementa Dispõe sobre intervenções cirúrgicas que visem à alteração de sexo e dá outras providências. Explicação da Ementa: Admite a mudança do prenome mediante autorização judicial nos casos em que o requerente tenha se submetido a intervenção cirúrgica destinada a alterar o sexo original, ou seja, operação transexual. Altera o Decreto-lei nº 2.848, de 1940. [12]

Assim, a alteração do nome constitui também um acréscimo ao direito à saúde da pessoa transexual, visto que a impossibilidade de viver a sua identidade de gênero não apenas na seara privada de sua vida, mas também no espaço público, através de seus direitos de cidadania, implica na maior qualidade de vida da pessoa – e a impossibilidade de deter a completude de seus direitos fundamentais, qual seja, o direito ao nome, evidencia mal estar do indivíduo. Assevera-se que a saúde não está relacionada apenas ao tratamento de doenças, mas a possibilidade de qualidade de vida do indivíduo.

2.1 O STF e a defesa dos direitos da pessoa

Os direitos da pessoa encontram-se expressos na Constituição Federal de 1988, principalmente no escopo do art. 5º, em que se assevera o direito a imagem, entre outros direitos atinentes a personalidade da pessoa. Salienta-se que em um contexto constitucional torna-se preciso um órgão jurisdicional competente para asseverar a conformidade da práticas jurídico-sociais com a Constituição – o Superior Tribunal Federal cumpre com esse papel.

Assim, deve-se considerar a atividade jurisdicional-constitucional do Superior Tribunal Federal enquanto compreende-se que: A jurisdição constitucional é a atividade que visa garantir a aplicação dos princípios e normas da constituição às controvérsias e dúvidas surgidas, concreta ou abstratamente, atividade advinda de órgão que atua com independência em relação aos órgãos ou poderes elaboradores do texto normativo objeto da fiscalização, ou do Executivo, de modo definitivo e imparcial.[13]

Destaca-se que entre os direitos da pessoa, ao qual o STF encontra-se incumbido de realizar a defesa quando suscitado pelos atores jurídicos, encontra-se o direito ao nome. O direito ao nome possui as características de obrigatoriedade, visto que ao nascer toda pessoa deve ser registrado no Ofício de Registro Civil de Pessoas Naturais (art. 50 da Lei nº 6.015/73); inalienabilidade visto que não pode ser transferido a outrem, seja de modo espontâneo ou oneroso; inacessibilidade, pois não pode ser cedido; intransmissão a herdeiros[14].

A inexpropriabilidade, ou seja, não constitui uma propriedade, mas sim de um direito subjetivo atinente a personalidade; inestimabilidade pecuniária, pois não é mensurável em valores pecuniários; irrenunciabilidade, ou seja, o indivíduo não pode dispor de seu direito ao nome já que este, integra a sua identificação e individualização; imutabilidade, comportando exceções que se expressam no art. 58 da Lei nº 6.015/73; imprescritibilidade e exclusividade[15].

Nesse sentido, considera-se o caráter de dinamicidade presente nos direitos da pessoa ao ponto em que são formulados e estruturados em suas inúmeras dimensões de acordo com a época e a cultura específicas de um povo. Nesse viés, tem-se em contraponto o caráter estático das legislações que não irá abarcar a totalidade das situações concretas a que a defesa dos direitos da pessoa é demandada.

5. A alteração do Registro Civil por Pessoas Transexuais

Compreende-se que antes da decisão do Superior Tribunal Federal, quando a alteração do nome no registro civil não ocorria a partir de atos puramente administrativos, tinha-se, no escopo das decisões judiciais as arguições de falta de interesse de agir e impossibilidade jurídica do pedido, no qual todo o embasamento da decisão estava na existência ou não da cirurgia de transgenitalização.

A esse respeito, tem-se o exemplo jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça que aponta o caminho realizado por Tribunais de Justiça Estaduais ao exigirem a cirurgia de transgenitalização, todavia, ao final, o STJ defende a ideia de que a identidade de gênero não precisa estar conformada com a genitália do indivíduo. Abaixo tem-se a ementa do caso visto que a mesma destaca a situação de vida da autora, que mesmo não realizando a cirurgia, desde pequena assume a sua identidade de gênero, tanto no meio privado quanto na seara de vida pública, inclusive mediante a mobilização social em prol de direitos de uma minoria política – a comunidade LGBTQI: Recurso Especial Nº 1.533.140 – Ba (2015/0217401-6) Relatora: Ministra Maria Isabel Gallotti Recorrente: Miraldo Almeida Silva Advogado: Jurema Cintra Barretos – Ba019558 Recorrente: Ministério Público Do Estado Da Bahia Recorrido: Os Mesmos Decisão Trata-se de recurso especial interposto por Miraldo Almeida Silva, com fundamento nas alíneas a e c do inciso III do artigo 105, da Constituição Federal, contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, assim ementado (fl. 90 e-STJ): Apelação cível ação de retificação de registro civil. Sentença que extinguiu o feito sem resolução do mérito por falta de interesse de agir. Interessado que ainda não realizou cirurgia de neovaginoplastia. Impossibilidade. Carência de ação. Sentença que deve ser mantida. O Apelante pleiteia alteração do nome e do sexo no registro civil, afirmando que desde tenra idade, apesar da conformidade genital masculina, psicologicamente se sente mulher, fazendo-se tornar conhecido pelo prenome de Milena. Todavia, o recorrente não se submetei à cirurgia de mudança de sexo, o que não permite alteração do nome e do sexo em seu registro civil. Precedentes jurisprudenciais. Sentença mantida. Recurso não provido.  O apelante sustenta em suas alegações no fato de que desde os nove anos de idade percebeu que não se identificava com o sexo biológico, sendo psicologicamente do sexo feminino, tanto que na adolescência passou a usar roupas femininas e ter atração por homens. Ainda acrescenta que em virtude do seu tipo de comportamento e em razão do elevado grau de preconceito passou a se engajar na defesa dos travestis e transexuais, fazendo parte do projeto Em Nome da Rosa em parceria com duas ONGs sem fins lucrativo: a ATRAS (Associação de Travestis e Transexuais de Salvador) e o Grupo Humanus (Grupo Gay de Itabuna). (STJ 0 RESP: 1551140 BA 2015/0217401-6: Relator: Ministra Maria Isabel Galloti, Data de Publicação: DJ 01/09/2017)

Nesse ponto, a ementa do caso assinala a importância de dar acesso ao direito do nome aos cidadãos transexuais que não desejam realizar a cirurgia, salientado a defesa dos direitos fundamentais da pessoa, em especial, o direito ao desenvolvimento da personalidade humana, a intimidade, a privacidade, a igualdade de direitos, a saúde, no qual se encontram o bem-estar psicofísico e o direito à felicidade; ainda, o tribunal, em sua decisão assevera o dever de respeito a diversidade ao qual o Estado, enquanto instituição democrática encontra-se submetido.

A saber: [...]. A citada jurisprudência deve evoluir para alcançar também os transexuais não operados, conferindo-se, assim, a máxima efetividade ao princípio constitucional da promoção da dignidade da pessoa humana, cláusula geral de tutela dos direitos existenciais inerentes à personalidade, a qual, hodiernamente, é concebida como valor fundamental do ordenamento jurídico, o que implica o dever inarredável de respeito às diferenças. 8. Tal valor (e princípio normativo) supremo envolve um complexo de direitos e deveres fundamentais de todas as dimensões que protegem o indivíduo de qualquer tratamento degradante ou desumana, garantindo-lhe condições existenciais mínimas para uma vida digna e preservando-lhe a individualidade e a autonomia contra qualquer tipo de interferência estatal ou de terceiros (eficácias vertical e horizontal dos direitos fundamentais). 9. Sob essa ótica, devem ser resguardados os direitos fundamentais das pessoas transexuais não operadas à identidade ( tratamento social de acordo com sua identidade de gênero), à liberdade de desenvolvimento e de expressão da personalidade humana (sem indevida intromissão estatal), ao reconhecimento perante a lei (independentemente da realização de procedimento médicos), à intimidade e à privacidade (proteção das escolhas de vida), a idade e a não discriminação (eliminação de desigualdades fáticas que venha a coloca-los em situação de inferioridade, à saúde (garantia do bem estar biopsicofisico) e a felicidade (bem-estar geral). 10. Consequentemente, à luz dos direitos fundamentais corolários do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, infere-se que o direitos dos transexuais à retificação do sexo no registro civil não pode ficar condicionado à exigência de realização da cirurgia de transgenitalização, para muitas inatingível do ponto de vista financeiro (como parece ser o caso em exame) ou mesmo inviável do ponto de vista médico. [...] (STJ 0 RESP: 1551140 BA 2015/0217401-6: Relator: Ministra Maria Isabel Galloti, Data de Publicação: DJ 01/09/2017)

Salienta-se que a  alteração do nome civil das pessoas naturais já ocorria, comportando exceções aos princípios que embasam o direito ao nome – como o da imutabilidade – dos quais se destacam quando há erro material, na situação casamento, de união estável, de separação, divórcio, casamento nulo e putativo, na situação de viuvez, no reconhecimento da paternidade, na descoberta do verdadeiro nome, pelo uso, por coação ou ameaça decorrente da colaboração na apuração de crime, quando a pessoa tem um prenome ridículo ou imoral, nas situações de adoção, homonímia, maioridade, abandono materno ou paterno e pela constituição do vínculo sócioafetivo, quando a apelido público notório ou quando a pessoa detém um nome estrangeiro[16]. Todos esses exemplos abrem margem legislativa e jurisprudencial para a alteração do nome civil das pessoas transexuais.

Nesse sentido, reconhecia-se também o direito a alteração do nome com a mudança de sexo pelo indivíduo, o que, consequentemente implicava na realização da cirurgia de transgenitalização. O Decreto nº 8.727 de 28 de abril de 2016 reconhecia, perante a Administração Pública, a identidade de gênero de travestis e transexuais, ao possibilitar a utilização do nome social perante os órgãos da administração direta, autárquica ou fundacional. Em que o nome social constitui aquele ao qual a pessoa é socialmente reconhecida e a identidade de gênero constituiria a resposta da pessoa ante as representações de masculino e feminino traduzidas para a sua prática social, desassociadas do sexo que lhe foi atribuído ao nascer (art. 1º Decreto nº 8.727/2016)[17].

Assevera-se que na Lei de Registros Públicos, Lei nº 6.015/73, em seu artigo 13 admite que os atos de registro podem ser praticados por ordem judicial, por requerimento verbal ou escrito dos interessados ou a requerimento do Ministério Público, quando a lei autorizar. Compreende-se que o art. 13, II abre margem para que a pessoa transexual possa realizar a alteração de seu prenome de modo administrativo, a partir da expressão de seu interesse.

Assim, no caso da ADI 4.275-DF duas posições acerca da alteração do nome se destacaram uma primeira que reafirmava a posição de acesso do direito ao nome pela pessoa transexual, mas do qual figurava a judicialização da questão, passando pela confirmação do Poder Judiciário. Nesse sentido posicionaram-se os Ministros Marco Aurélio acompanhado de mais cinco votos do qual colocaram como requisitos para a alteração do nome os seguintes critérios:

  • A necessidade de o indivíduo ter ao menos 21 anos;
  • O diagnóstico médico multidisciplinar de “transexualismo”;
  • O acompanhamento de equipe multidisciplinar por dois anos.[18]

Por outro lado, o Superior Tribunal Federal, com as proposições defendidas pelo Ministro Ricardo Lewandowski, do qual por 6 votos viu a sua defesa ganhar a disputa da questão, trouxe uma perspectiva de desburocratização do acesso ao nome pelo cidadão transexual. Além disso, retirou da questão a via de patologização da transexualidade – questão que acompanha o posicionamento de inúmeras instituições médicas como se verá.

Assim, nos critérios vencidos para a alteração do nome no Registro Civil, encontram-se:

  • A necessidade do indivíduo de ter ao menos 18 anos de idade;
  • A existência de uma convicção do sujeito de sua identidade de gênero por, no mínimo, três anos;
  • O proferimento de relatório de uma equipe especialista de que o indivíduo, de fato, detém a identidade de gênero informada. [19]

Nesse sentido, o país, por meio de suas instituições que permitem o exercício da cidadania e a afirmação da personalidade de cada indivíduo, encontram-se abertas a realização dos direitos fundamentais da pessoa. A próxima seção aprofunda esse cenário ao tratar da desburocratização do procedimento de alteração do nome no registro civil e conecta tal cenário com o respeito à dignidade humana.

5.1. A desburocratização do procedimento e a concretização da dignidade humana

No ordenamento jurídico brasileiro, cuja matriz constitucional é forte, tem-se a arguição de um valor importante para as instituições e indivíduos, trata-se da dignidade humana, asseverada como um guia para as diligências sociais. Tem-se o escopo das garantias sociais ao qual o indivíduo pode se projetar moralmente enquanto um representante do gênero humano, e por isso desenvolver a seara da sua personalidade[20].

A desburocratização do procedimento de alteração do nome no registro civil coaduna com a superação do positivismo presente nas formulações do Estado Democrático de Direito de matriz constitucional, ao qual um novo modelo de constitucionalismo institui instrumentos normativos e institucionais pautados na proteção dos direitos fundamentais. A filtragem hermenêutica-constitucional propiciada por esse novo paradigma do direito conduz as realizações da ciência jurídica aos critérios de facilitação de acesso às prerrogativas essenciais da personalidade do indivíduo[21].

O positivismo representa a obediência irrestrita ao conteúdo normativo, e, dispõe o entendimento da soberania do direito ante uma comunidade política[22]. Assevera-se a Constituição Federal possui uma dimensão política que determina uma interpretação menos técnica dos casos concretos, a Carta Magna propicia a comunicação entre o fato político e a ordem jurídica, entre o poder que já está estabelecido na sociedade e aquele que luta por se estabelecer[23].

Nesse viés: Um tribunal constitucional deverá agir com ousadia e ativismo, nos casos em que o processo político majoritário não tenha atuado satisfatoriamente, e com prudência e autocontenção em outras situações, para não exacerbar aspectos do caráter contramajoritário dos órgãos judiciais, vulnerando o princípio democrático.[24]

Deve-se asseverar a importância do Registro Civil das Pessoas Naturais para a consecução do direito ao nome enquanto direito fundamental para todos. Por meio do registro tem-se a publicização da cidadania do indivíduo, que em termos diretos significa o ganho de deveres e direitos perante todo o escopo social. O Registro Civil das Pessoas Naturais pode ser alterado de modo administrativo e tal ocorrência já era permitida no caso de erro evidente cometido pelo Oficial Registrador, ao qual o artigo 110 da Lei de Registros Públicos dispõe o procedimento[25].

Nesse sentido, a ação de desburocratização da alteração do nome no registro civil coaduna com o processo pró-positivista do direito, em que a realização da dignidade humana é o parâmetro para o comportamento das instituições. Além disso, ao possibilitar a preservação da ordem democrática, com os seus valores de igualdade, liberdade, e destaque à defesa da pessoa est