EULÂMPIO RODRIGUES FILHO
Graduado pela Universidade Federal de Uberlândia
Pós-Doutor em Direito
Advogado
O cenário jurídico econômico do Brasil, empós da destruição das suas estruturas de sustentação parece abrir campo ao exercício do seguinte raciocínio:
“Avulta em meio à vida de relação fato novo - a inadimplência -, antes dado como isolado e sem realce frente à Nação, mas que agora aparece como elemento a considerar, sob os aspectos jurídico e econômico, a exigir tratamento diverso do antes dispensado e sobre o qual cabe mesmo ao Judiciário atuar tendo em conta o requerido do processo executório ou falencial, com menoscabo a quadros rígidos e formais, ou matemáticos, de modo a proceder agora, ao apreciá-lo, à transfusão de eqüidade e de justiça, a par do cuidado em contemplá-lo não mais segundo a imobilidade da lei, mas tomando em consideração a renovação do tema á luz de todo o sistema jurídico, aí incluída a CF. (...)” (EULÂMPIO RODRIGUES FILHO), em razões forenses).
Hoje em dia, no Brasil, a mora não mais tem como constituir-se em sustentáculo de execuções que comprometam patrimônio moral.
Trata-se de fator que tem exigido edição de leis e normas autorizadoras de prorrogação e revisão dos contratos em geral, visando a afastar efeitos nefastos do notório desequilíbrio econômico nacional, em puro atendimento às necessidades racionais de ordem econômica, conforme tese do ilustre Professor da Faculdade de Direito de Alexandria, MOSTAPHA MOHAMED EL GAMMAL, L’Adaptation Du Contract aux Circonstances Économiques, págs. 156 e seg., apud MARCIO KLANG, A Teoria da Imprevisão e a Revisão dos Contratos, SP, RT, 1991, 2ª ed., págs. 60 e seg.
Ora, se o legislador, a despeito do regime falido totalitário – embora disfarçado – em que vivemos durante largo tempo, tem atuado de modo a reconhecer a inadimplência e a mora como fatores a considerar, não quanto aos efeitos que outrora foram a insolvência ou a falência, mas de modo a serem revistas, reexaminadas, reconsideradas, como, por exemplo, através de renegociações e da securitização, há uma evidência jurídica de que o incumprimento de obrigação não mais figuraria como causa mortis.
Essa abertura legal, com atenção ao princípio da isonomia já constituia-se no flanco por onde o jurista há de penetrar visando à manutenção de empreendimentos sérios, comprometidos face a dificuldade financeira presumivelmente temporária enquanto fica o inescondível “efeito” do estado de calamidade econômica no País, com crescimento abaixo de zero.
De fato, a lei não deve ser contemplada ou aplicada como que transigente com absurdos.
Se ao tempo do ‘fio de barba’ bastava incumprir para surgir o decreto de execução forçada como forma de se assegurar mais a ordem moral do que a econômica ou jurídica, hoje, face as circunstâncias inerentes à economia nacional, e o próprio progresso científico, essa preocupação, sem violar preceitos éticos, passou a convergir, de forma racional, para a salvação do empreendedor, se possível diante de um sumário diagnóstico, e, por imposição dos requisitos da sobrevivência humana (Lei 11.101/2005, art.-47).
Isto decorre, à evidência, da imperatividade do asseguramento, não só da Ordem Econômica, mas também da Ordem das Atividades Privadas que a inerem (CF, Título VII, Cap. I).
De fato, determina a Carta Magna de 1988:
“Art. 170. A ordem econômica fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (...)”
O que o “princípio” parece consagrar não é um critério de favor quando da apreciação de causa em que esteja em jogo a própria pessoa, mediante respeito ao trabalho humano, à livre iniciativa, à existência digna conforme os ditames da justiça social; ao fazê-lo, isto é, se ao interpretar a lei falham os métodos ordinários de interpretação visando a manter incólume a entidade humana, então faz-se necessário tomar em conta a pessoa em si, para justa solução da situação de conflituidade, o que não acontece se ela tiver de, junto ao desmantelamento da economia nacional, sem culpa declarada, sucumbir.
E nesse caso, pondo à frente o próprio patrimônio, é ela, a pessoa, que interessa à solução do impasse. Se ela ostenta-se solvável diante do débito que instrui o pedido de cobrança, merece o tratamento favorecido assegurado na norma fundamental, em detrimento de “conclusão particular” em franco descompasso com a própria norma legal.
“O que não pode admitir é que interesses egoísticos de determinados credores se sobreponham aos interesses de toda uma coletividade, arruinando irremediavelmente organizações produtivas que conjugam não somente os interesses pessoais do empresário, mas sobretudo o interesse público que decorre da estabilidade social, representada na manutenção de empregos com o sustento de dezenas, se não milhares de trabalhadores e suas respectivas famílias.” (AMADOR PAES DE ALMEIDA (pág.6).
De sorte que em meio ao exame do tema existe campo ainda para exploração da “política judiciária”. E esta não aperfeiçoa o Direito se se buscam soluções com substrato em ementas vazias, de “enunciados”, se mesmo ao tempo da antiga Lei de Falencias o Direito apropositado estava em franca evolução, tratando-se de “retrocesso” o ato de constranger o beneficiário da Recuperação Judicial, por exemplo, ao ponto de tornar, em tese, vazio o instituto da Recuperação Judicial ou o da Insolvência.
A propósito, lúcida decisão proferida pelo TJMG, através do douto Desembargador ANTONIO BISPO, ao desenlaçar o Agr. Instr. 1.0271.15.006968-7/001:
“o consumidor, nos termos do CPC, possui o direito líquido e certo de obter a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em face de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas. De outro modo, é inequívoco que a parte devedora aderiu unilateralmente ao contrato bancário objeto da revisão, não lhe tendo sido dada a oportunidade de discutir os termos da avença.
“Destarte, a verossimilhança das alegações se apresenta, sobretudo, se considerar que o contrato revisado é de natureza bancária, o qual, não raras vezes, encontra-se eivado de ilegalidade e abusividades, mormente no tocante à taxa de juros remuneratórios e aos demais encargos moratórios (juros, multa, cláusula penal), (...)
“De outro modo, também está presente o perigo de lesão à parte em decorrência da demora na efetivação do direito material, pois as conseqüências da mora poderão ser irreversíveis, sendo totalmente desnecessário tecer grandes considerações acerca dos danos decorrentes da negativação nos órgãos de Proteção ao Crédito.
“Isto posto, não há necessidade de negativação do nome do autor, ora agravante, nos referidos órgãos, visto que foi depositado imóvel em garantia..”
A Preservação da Idoneidade Comercial
Diante de uma situação de inadimplência é comum – principalmente quando do outro lado figuram instituições financeiras – que haja uma espécie de “punição por mãos próprias”, quando o credor, por força de lei ora vigente decide, faz registrar o nome do demandado em sistemas de cadastro de devedores e similares.
Observe-se que na Lei (CPC, art. 782, § 3º), que no caso da execução mesmo embargada, a inadimplência, antes de reconhecida pelo Juízo é “decretada” pelo exeqüente, e os efeitos são cumpridos através do julgador, no caso, simples observador.
Doutra parte, “de cabo de esquadra” a determinação específica de uso de “força policial” no § 2º do mesmo artigo, que alberga emprego dessa força, junto à prática de atos apropositados, isto é, relativos a solução de questões de natureza civil, ou negociais.
O mais comum resultado prático que se atinge com essas condutas previstas é, em legitimação da arbitrariedade e da prática da “coação no curso do processo”(Código Penal, art. 344), a dilapidação moral do devedor, que mesmo conseguindo quitar seu débito mais adiante jamais recuperará o ‘statu quo ante’, pois essa espécie de depreciação é muitas vezes irreversível, sem contar que fere também o patrimônio, provocando lesão emergente, pela perda do crédito.
Quanto a esta questão, prescreve a lúcida lição do Desembargador GASPAR RUBICK, que vem sendo evocada em várias decisões do TJSC, como por exemplo no Agravo de Instrumento 960046-73, de Tijucas:
“Ocorre que não logrou êxito em confirmar presente o periculum in mora, pois o SPC e o SERASA constituem-se em organizações privadas que, em resumo, têm por fim lançar anátema sobre aqueles que, inadvertidamente, deixam de cumprir com alguma obrigação ligada ao sistema financeiro. E, por certo, a inscrição do nome de alguém em tais instituições, causa muito mais prejuízos ao cadastrado do que a sua não inclusão às empresas de crédito.
“Com o registro do nome do devedor, o crédito, muitas vezes mantido incólume anos a fio, desfaz-se da noite para o dia, passsando uma pessoa ou uma empresa por inveterada caloteira, sem que lhe ofereça meios de defesa ou se lhe apresente uma sentença judicial condenatória. Não se admite a contestação do débito ou qualquer escusa. Sobre ela é lançado o opróbrio de inadimplente, que somente é levantado após burocrático e moroso processo.
“O fato é que o crédito do cadastro fica aniquilado, enquanto que se for ele excluído da nominata nenhum prejuízo se mostra evidente para o sistema financeiro, até porque o fato de não ter alguém honrado com um compromisso aqui, não é indicativo certo de que vá fazê-lo acolá.
“Destarte, nesse aspecto, é de ser negado o pedido de conferimento de efeito suspensivo ao agravo.” (grifo nosso)
A propósito o Desembargador PEDRO MANOEL ABREU faz referência à exposição do Juiz ALCINDO GOMES BITTENCOURT, coordenador do Centro de Estudos do Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul, “verbatim”:
“Não ofende direito do credor liminar obstativa da inscrição do nome do devedor em banco de dados de consumo, assim como impeditiva de que o credor comunique a terceiros registro de inadimplência que haja procedido em seu cadastro interno, durante a pendência de processos que tenham por objeto a definição da existência do débito ou seu montante, (11ª conclusão).
“Comentando a referida conclusão, o Juiz ALCINDO GOMES BITTENCOURT, Coordenador do CETARGS, apresentou a seguinte justificativa:
“Os arquivos de consumo apresentam dupla modalidade. Ora se estabelecem como bancos de dados (v. g., SPC ou SERASA), ora como simples cadastros, elaborados, geralmente, à vista de informes do consumidor, acrescentando à empresa, por vezes, informes seus. Ambos, de qualquer sorte, são considerados como entidades de caráter público (§ 4º do art. 43 da Lei 8.078/90).
“Se está em debate a existência do débito ou seu montante, não se compreende seja o devedor tratado como inadimplente e, via inscrição em banco de dados ou pela divulgação do que constar no cadastro interno do credor, sofra restrição creditícia. Ademais, se o devedor tem direito à imediata retificação de dados inexatos, § 3º do art. 43 do Código de Defesa do Consumidor, não se compreende que possibilite lançamentos eventualmente equivocados, sem que se possam ser de imediato retificados, vez que somente após a definição no processo é que a erronia restará definida. (...)
“(in Ajuris, 67/172)’.” AI 96005563-0, de Tijucas; Relator Desembargador PEDRO MANOEL ABREU. (grifo nosso).
Não padece dúvida de que a inspiração para adoção de semelhantes providências exsurge de práticas então desenvolvidas por ocasião da vigência do Direito caduco, quando, aliás, já eram execradas inclusive pelos mais festejados luminares da Ciência Jurídica, como se vê, por exemplo, do legado magnífico de LOBÃO (MANOEL ALMEIDA DE SOUZA, laureado pela extraordinária Universidade de Coimbra.:
"Punir constantemente a insolvabilidade pela prisão; confundir a miséria com o crime; cobrir o inocente de toda a infâmia da perversidade, em lhe arrancando a honra; forçá-lo a renunciar a virtude; tirar de um homem de bem infeliz até a propriedade do seu corpo, que o destino inexorável lhe há deixado; fazê-lo comprar por um suplício, muitas vezes eterno, o ligeiro alívio, que ele tinha obtido em seu infortúnio; condenar à inação, aos tormentos e aos vícios, que a acompanham, aquele que não tem mais que os seus braços, ou os esforços do seu espírito, para fazer subsistir sua família e pagar seu credor; privar a sociedade de um homem que não a tem ofendido, e que lhe poderia ser útil; dar a um credor implacável o poder de conservar o seu devedor neste estado de opróbrio e de desolação tanto tempo quanto ele quiser, e de satisfazer sua vingança com as armas da lei; em uma palavra, ofender a justiça, ultrajar os direitos mais preciosos do homem e do cidadão, e multiplicar as infelicidades da indigência sem favorecer as propriedades – tais são os abusos da prisão por dívidas, estabelecida em todos os países da Europa mesmo entre aqueles que mais se gloriam da sua humanidade e de sua liberdade." (FILANGIERE, “apud” LOBÃO, Execuções, pág.145, § 181).
A doutrina pátria vem no mesmo sentido:
“Com efeito, o direito penal deve intervir minimamente na esfera de direitos e obrigações dos indivíduos, precisa atuar apenas quando outros ramos do direito não forem suficientes para a proteção dos bens jurídicos e para a manutenção da harmonia das relações sociais. O direito penal é o verdadeiro soldado de reserva, trata-se da última ratio e do ramo jurídico que impõe a sanção reconhecidamente mais drástica.” (VINICIUS QUEIROZ, Jusbrasil).
De sorte que no Brasil de hoje, em razão de má-fé, ou de ingenuidade, o progresso jurídico faz-se mediante submissão da moral à regulamentação legal de semelhantes conseqüências.
Eulampio Rodrigues Filho é Professor de Direito Processual Civil, Professor de Organização Comercial, Doutor em Direito pela UMSA(Buenos Aires), Pós-Doutorando na Universidade de Messina(Itália), Membro do Instituto de Direito Processual, Membro Efetivo da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos, Doctor en Ciencias Juridicas(Argentina)