A primeira parte desta série cuidou da aplicação do artigo 723, parágrafo único, do Código de Processo Civil, aos procedimentos judiciais e extrajudiciais de retificação de nome civil no Registro Civil de Pessoas Naturais1.
Naquele texto, destacou-se que o artigo confere ao magistrado, em processos de jurisdição voluntária, a prerrogativa de não seguir a legalidade estrita, podendo aplicar ao caso a solução que reputar mais oportuna e conveniente. Como exemplo, mencionou-se a hipótese, chancelada pelo STJ, de alteração imotivada de nome civil em razão de constrangimentos sofridos por homônimo de réu em ação penal2.
Contudo, o texto alertou que o uso dessa prerrogativa demanda prudência pelo magistrado, que deverá ponderar os interesses envolvidos (pretensão individual do jurisdicionado versus texto legal) para concretizar, por meio de sua tutela jurisdicional, os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, do (efetivo) acesso à justiça e da eficiência da Administração Pública.
Nessa mesma linha, esta segunda parte tratará da aplicação jurisprudencial e extrajudicial da regra do art. 723, parágrafo único, do Código de Processo Civil aos inventários extrajudiciais.
A mens legis do inventário extrajudicial
Este articulista sustentou, apoiado na doutrina abalizada, que, desde a Constituição Federal da República de 1988, houve experiências válidas com relação à desjudicialização, a exemplo da introdução da Lei de Arbitragem em 1996 (Lei Nacional nº 9.307/96)3. Além disso, a Emenda Constitucional nº 45/2004, ao criar o CNJ: "igualmente contribuiu para o incremento da desjudicialização, tendo em vista que, em diversas hipóteses, o fenômeno avançou através da edição de atos normativos oriundos do referido órgão de controle"4.
Foi nesse contexto de meios alternativos à judicialização dos conflitos que se concebeu a Lei Nacional nº 11.441/2007, que possibilitou a realização de inventário, partilha de bens, separação consensual e divórcio pela via administrativa. Nas palavras do Ministro Luis Felipe Salomão, sua mens legis consistia em: "desafogar o Judiciário, afastando a via judicial de processos nos quais não se necessita da chancela judicial, assegurando solução mais célere e efetiva em relação ao interesse das partes [...]"5.
Após quinze anos de vigência da lei, é indiscutível sua efetividade6. Como exemplo, cita-se informação, trazida pela segunda edição da revista "Cartórios em Números", no sentido de que foram realizados mais de 780 mil divórcios extrajudiciais, e mais de 1,5 milhão de inventários pela via extrajudicial entre o período de janeiro de 2007 a setembro de 2020, o que possibilitou - somente no ano de 2018 - economia de 5 bilhões reais aos cofres públicos7-8.
Como ilustrarão os exemplos abaixo, o sucesso da desjudicialização de atos judiciais iniciou um movimento orgânico, em procedimentos de jurisdição voluntária, no intuito de ampliar as possibilidades de entrega da prestação jurisdicional9, sem que a (aparente) violação à norma legal represente prejuízo às partes ou à jurisdição estatal, mas - ao contrário - um fortalecimento desta10.
A possibilidade de realização de inventário extrajudicial em caso de testamento
O primeiro exemplo é a possibilidade de realização de inventário extrajudicial em caso de testamento, a despeito da previsão legal do art. 610, caput, do Código de Processo Civil.
Concebida em vanguardistas julgados desde o advento da Lei Nacional nº 11.441/2007, a tese foi acolhida pela doutrina majoritária, como relevam o Enunciado nº 600 da VII Jornada de Direito Civil11 e o Enunciado nº 51 da I Jornada de Direito Processual Civil, ambas promovidas pelo Conselho da Justiça Federal (CJF)12.
A Resolução nº 35/2007 do CNJ, que regula o instituto do inventário extrajudicial no âmbito administrativo, não dispõe quanto ao tema. Entende-se, portanto, que a decisão está a cargo das Corregedorias Gerais de Justiça (CGJs), órgãos dos Tribunais de Justiça encarregados da fiscalização dos serviços extrajudiciais estaduais. Estas, por sua vez, vêm acolhendo a tese, citando-se, como exemplo, o Provimento CGJ/SP nº 37/2016:
Diante da expressa autorização do juízo sucessório competente, nos autos do procedimento de abertura e cumprimento de testamento, sendo todos os interessados capazes e concordes, poderão ser feitos o inventário e a partilha por escritura pública, que constituirá título hábil para o registro imobiliário13.
O STJ conferiu respaldo jurisprudencial a essa prática em dois precedentes. Nos autos do Recurso Especial nº 1.808.767/RJ, diante da constatação de que (i) todos os herdeiros eram maiores, estavam representados por advogados e com interesses harmoniosos; (ii) havia concordância da Fazenda Estadual e Ministério Público e (iii) o testamento público fora devidamente aberto, processado e concluído perante a vara de Órfãos e Sucessões, o voto condutor, ao permitir a realização de inventário extrajudicial ainda que existente testamento, expôs que:
Deveras, o processo deve ser um meio, e não um entrave, para a realização do direito. Se a via judicial é prescindível, não há razoabilidade em proibir, na ausência de conflito de interesses, que herdeiros, maiores e capazes, socorram-se da via administrativa para dar efetividade a um testamento já tido como válido pela Justiça14.
O entendimento fora confirmado em 2022 pela Terceira Turma do STJ, nos autos do Recurso Especial nº 1.951.456/RS, de relatoria da Min. Nancy Andrighi. O voto condutor argumentou que a percepção de que os testamentos são potencialmente geradores de conflitos entre os herdeiros, contida na exposição de motivos da Lei nº 11.441/2007, é desconstruída quando, no caso concreto, inexiste litigiosidade (rectius: pretensões conflitantes), o que afastaria risco de prejuízo às partes ou terceiros. Em reforço, concluiu o voto:
Some-se a isso, ainda, o fato de que as legislações contemporâneas têm estimulado fortemente a autonomia da vontade, a desjudicialização dos conflitos e a adoção de métodos adequados de resolução das controvérsias, de modo que a via judicial deve ser reservada somente à hipótese em que houver litígio entre os herdeiros sobre o testamento que influencie na resolução do inventário15.
Diante dos fundamentos elencados, à luz da norma do art. 723, parágrafo único do CPC, é salutar a posição adotada pelo STJ que, a despeito da previsão legal do artigo 610, caput, do CPC, entende pela possibilidade de inventário extrajudicial em caso de testamento.
Confira aqui a íntegra do artigo.
Fonte: Migalhas